02 julho 2008

Os campos santos

Dia nublado de um inverno nada rigoroso no Hemisfério Norte. Uma longa caminhada sobre vinte centímetros de neve me separava do ponto de ônibus. Um vento frio e congelante me tomava por dentro. Uma tristeza, um pesar.

Acordada de uma noite não-dormida, fui ao trabalho. E em todo o trajeto, desenhava na neve do lado de fora do ônibus, imagens de uma vida. Vi crianças correndo, a celebração de um casamento, barcos ao largo de um cais, um belo calçadão na praia, luzes quase apagadas numa casa na Avenida Beira-Mar.

Deixe-me ir com meus pensamentos, sempre de olho no percurso que o ônibus tomava, e findei nas lembranças de uma infância perdida, dias dealegria no jardim da casa da tia do coração. Tarde de férias no mês de julho, calor, sorvete que passava na porta, brincadeiras de roda e bola com as vizinhas da rua. Lembrei-me dos dias em que íamos à praia, pegar sol e brincar no mar, construir castelinhos e piscinas na areia molhada da Praia do Futuro.

E lá, encontrava aquele senhor barbudo, algumas vezes, por trás de um balcão, a dar ordens a um grupo de empregados, observar o andamento dos pedidos, controlar entrada e saída de produtos. Passávamos o dia por lá, brincando e rindo com suas graças, comíamos peixe na brasa, bebíamos refrigerante à vontade. Na volta para casa, o cansaço do mar, o banzo da falta, o respeito, um semestre sem vê-lo.

Temos tempo e meios de viver todas as emoções, de criar e ver crescer cada coisa, cada lugar. Mas, sabemos fazê-lo? Ele era um homem sério, de rosto terno, que vivia na praia. No mar e do mar, viveu seus dias, e passou para nós, o amor por ele. De uns tempos para cá, andava com o apoio de uma bengala para preservar a integridade e lá do alto, enxergava, com seus olhos azuis, tudo o que se passava. Abaixo disso, tinha os olhos fixos nas folhas, cascas e insetos, nenhum mínimo detalhe lhe escapava. Acima, seus finos cabelos brancos impunham ainda mais respeito. Subia e andava devagar, mas avançava.

Já ontem, meu avô não ouvia mais tão bem. O tempo estava passando e os dias diminuindo. Já não se via mais do mesmo jeito, já não se ouvia. Começava-se a viver o que se viveu. Era um aproximar-se mais e mais do centro do redemoinho que engole a todos nós. E quando o ônibus se aproximava do terminal, mesmo egoísta e triste, entendi, que não seria por mim, mas sim por ele, que eu precisava deixá-lo ir, descer do ônibus. Era chegada a hora, para ele, de ir conhecer a “geologia dos campos-santos”.

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